Atualmente o judiciário Brasileiro tem registrado um aumento de ações discutindo a possibilidade de cobrança de dívidas prescritas e a utilização de plataformas tais como “Serasa Limpa Nome”.
A ferramenta “Serasa Limpa Nome” foi criada e é gerida pelo Serasa Experian, empresa especializada em soluções para proteção de crédito. A plataforma “Limpa Nome”, tais como outras de categoria semelhante (“Acordo Certo” ou “Quite Já”) funciona como intermediadora entre os consumidores e as instituições credoras. O acesso do consumidor à plataforma é voluntário, mediante a inserção de seus dados pessoais e de senha previamente cadastrada.
De acordo com o Mapa da Inadimplência e Negociação de Dívidas no Brasil, formulado pelo Serasa, em maio de 2024, mais de 72 milhões de brasileiros estavam inadimplentes. Somente nesse mês, a plataforma Serasa Limpa Nome concedeu mais de oito bilhões de reais em descontos nas renegociações de dívidas. Ao todo, havia 550 milhões de ofertas na plataforma, totalizando mais de 793 milhões de reais.
Esses mecanismos extrajudiciais de negociação de dívidas têm sido largamente utilizados para recuperar créditos considerados “perdidos”. Dívidas prescritas, que podem limitar a contratação com o credor – ainda que não afetem score de crédito do consumidor – são frequentemente incluídas nessas plataformas. E isso tem gerado discussões no Judiciário.
Até maio de 2024, a matéria relativa à cobrança extrajudicial de débito prescrito e às plataformas Serasa Limpa Nome e Acordo Certo já gerou 1.771 decisões e 11 acórdãos proferidos no STJ.
Se a matéria é tão judicializada, surge naturalmente a dúvida: pode uma dívida prescrita (que não pode mais ser cobrada judicialmente) ser cobrada no Serasa Limpa Nome? Essa conduta do credor é lícita ou ilícita?
A prescrição é, nos termos do art. 189 do Código Civil, o instituto pelo qual se extingue a pretensão do titular de um direito. Pretensão é o poder do credor de exigir do devedor, coercitivamente, a prática de uma ação ou omissão (cumprimento da obrigação assumida). Com a prescrição da dívida, o credor perde o poder de forçar o devedor a cumprir a obrigação.
A dívida ainda existe e o crédito ainda é válido, tanto que o art. 882 do Código Civil estabelece como irrepetível o pagamento de dívida prescrita, reconhecendo assim a existência e validade de um débito não exigível (prescrito).
Com a prescrição, a obrigação jurídica se converte em obrigação natural, ou seja, aquela em que o credor não pode exigir a prestação do devedor, já que a pretensão foi extinta. No entanto, o direito em si não desaparece, apenas sua “capacidade defensiva” em juízo (exercício da pretensão).
Considerando que o direito subjetivo persiste após a prescrição (que extingue apenas a pretensão), a princípio seria lícita e possível a cobrança extrajudicial de dívidas prescritas. E essa era a posição do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.
Contudo, com o aumento das discussões no Judiciário sobre a cobrança extrajudicial de dívidas prescritas, sobretudo em uma plataforma bastante utilizada (a “Serasa Limpa Nome”), surgiram divergências de entendimentos para solução da questão, motivo pelo qual alguns estados federados deram início ao ajuizamento de Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR’s) e Incidentes de Uniformização de Jurisprudência (IUJ’s - este uma criação do Código de Processo Civil revogado), ambos instrumentos para uniformizar a jurisprudência dos Tribunais de Justiça do país.
Nos termos do artigo 985 do Código de Processo Civil, uma vez julgado o incidente, a tese jurídica firmada será aplicada: (i) a todos os processos individuais ou coletivos que tratem da mesma questão de direito e que estejam na área de jurisdição do respectivo tribunal; e (ii) a casos futuros sobre a mesma questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal.
Em relação ao tema Serasa Limpa Nome, foram identificados 6 (seis) IRDRs/IUJs (em tramitação/julgados), instaurados nos seguintes Tribunais de Justiça: TJAM, TJRS, TJMG, TJRN, TJSP e TJSC. E o posicionamento dos Tribunais quanto a essa temática não é unânime.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, no IRDR n. 032928-62.2021.8.21.7000, reconheceu a legalidade da inclusão de dívidas prescritas no serviço Serasa Limpa Nome, bem como a ilegitimidade da empresa Serasa para responder por demandas que envolvam a (in)existência ou validade do crédito prescrito incluído na referida plataforma
Já o Tribunal de Justiça de São Paulo, embora tenha inadmitido o IRDR n. 130741-65.2021.8.26.0000 por inexistência de divergência jurisprudencial significativa, aprovou o Enunciado n. 11 da Turma Especial da Subseção II de Direito Privado, que diz: "A cobrança extrajudicial de dívida prescrita é ilícita. O seu registro na plataforma 'Serasa Limpa Nome' ou similares de mesma natureza, por si só, não caracteriza dano moral, exceto provada divulgação a terceiros ou alteração no sistema de pontuação de créditos: score".
Por outro lado, o Tribunal de Justiça do Amazonas (IUJ n. 0003543-23.2022.8.04.9000) estabeleceu as seguintes teses: a) as plataformas de negociação de dívidas não possuem a mesma natureza dos instrumentos de proteção ao mercado de consumo, isto é, dos serviços de proteção ao crédito, e os registros delas constantes não configuram negativação, desde que respeitado o sigilo das informações e ausente coerção para aderir às propostas; b) a inserção de registro de dívidas prescritas em plataformas de negociação é legítima e não configura indevida restrição de crédito, por não afetar o credit score do consumidor.
No Distrito Federal, embora não haja um incidente de uniformização de jurisprudência, várias Turmas Recursais dos Juizados Especiais e de algumas Turmas Cíveis do Tribunal (em especial a Quinta e Sexta Turmas) têm reconhecido a ilegalidade da cobranças de dívidas prescritas, inclusive por plataformas como a Serasa Limpa Nome. No Rio de Janeiro, a posição dominante também reconhece a impossibilidade de cobrança de dívidas prescritas, inclusive com inclusão de condenação do credor por danos morais em algumas circunstâncias.
Por esse motivo, recentemente o Superior Tribunal de Justiça, em decisão de maio deste ano, decidiu pela afetar três Recursos Especiais (REsp 2.092.190/SP, REsp 2121593/SP e REsp 2122017/SP) à sistemática dos Recursos Repetitivos, tendo sido estabelecida no acórdão a seguinte controvérsia a ser resolvida (Tema 1264): “definir se a dívida prescrita pode ser exigida extrajudicialmente, inclusive com a inscrição do nome do devedor em plataformas de acordo ou de renegociação de débitos.”
A afetação determinou a suspensão de todos os processos “[...] individuais ou coletivos, que versem sobre a mesma matéria, em processamento na primeira ou na segunda instância” e suspensão também dos processos “[...] nos quais tenha havido a interposição de recurso especial ou de agravo em recurso especial na segunda instância, ou que estejam em tramitação no STJ”.
A instauração do procedimento de demandas repetitivas se deu após a fixação, pela Terceira Turma do STJ, firmando o entendimento a respeito da impossibilidade de cobrança de dívidas prescritas (REsp 2.088.100/SP, Terceira Turma, julgado em 17/10/2023, DJe de 23/10/2023). Esse o posicionamento, que diverge das decisões anteriores da própria Corte Superior, aumentou ainda mais a controvérsia sobre o tema que já era polêmico. Nesse sentido, algumas decisões no âmbito dos próprios Tribunais Estaduais têm se manifestado contra o conteúdo já uniformizado no TJ do Estado, sob o argumento de que o próprio STJ vem decidindo de maneira divergente.
Assim, deve-se aguardar o julgamento do Tema 1.264 para que a questão seja definida pelo Superior Tribunal de Justiça, já que o resultado importará em impacto jurídico e econômico relevante para empresários e consumidores, em especial quando a divergência estadual é tão significativa, o que impõe uma dose relevante de insegurança jurídica na adoção das práticas comerciais rotineiras.
Anna Carolina Gouveia Marques Silva - Advogada Cível
Nathalia Mariah Mazzeo Issa Vieira - Advogada Cível