Recentemente, o Governo Federal assinou a Proposta de Projeto de Lei Complementar que visa garantir direitos mínimos para motoristas de aplicativo, classificando-os como trabalhadores autônomos que prestam serviços para as plataformas operadoras. Os principais pontos do projeto são: (i) garantir a remuneração mínima R$ 32,10 por hora trabalhada e um salário mínimo mensal (R$ 1.412,00); (ii) estabelecimento de uma jornada máxima não superior a 12 horas diárias para uma mesma plataforma; (iii) recolhimento de contribuição à Previdência Social de 27,5% (7,5% do empregado e 20% dos empregadores); (iv) disponibilidade de auxílio maternidade para motoristas, visto se tratar de benefício garantido aos segurados do INSS.
O presente artigo, busca-se examinar a legalidade da exigência de recolhimento obrigatório de contribuições sociais à Seguridade Social sobre a atividade dos motoristas de aplicativo, especificamente da parcela a ser recolhida pelo empregador, considerando a hipótese de incidência do tributo prevista na legislação em vigência, bem como as discussões atuais em torno da regulamentação do trabalho dos motoristas.
Inicialmente, é fundamental ressaltar que o fator gerador da obrigação de recolhimento de contribuições à Seguridade Social pelo empregador está previsto no artigo 195, I, alínea “a” da Constituição Federal de 88. Este dispositivo estabelece que a contribuição social incidirá sobre o total da folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, às pessoas físicas que lhe prestem serviços, mesmo que não haja vínculo empregatício. Por sua vez, o artigo 22, I, da Lei nº 8.212/1991, prevê incidência da contribuição com o percentual de 20% sobre a totalidade da remuneração paga aos trabalhadores que prestem serviços às empresas, destinada a retribuir o trabalho prestado.
Feita essa exposição da previsão legal das contribuições, analisaremos a natureza jurídica dos serviços oferecidos pelas empresas de aplicativos. Atualmente, há uma grande discussão em âmbito judicial se os motoristas de aplicativo possuem vínculo empregatício com as empresas operadoras da plataforma digital. Esse tema foi reconhecido como de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal e será decidido pela Corte (Tema nº 1.291).
Quem levou o assunto até o STF foi a Uber, empresa estrangeira com ampla atuação no Brasil. Ela argumenta que inexiste relação de trabalho entre ela e os motoristas, sustentando que não é uma empresa de transporte, mas sim uma empresa de tecnologia que realiza a intermediação de serviços entre os usuários e os motoristas parceiros. A Uber afirma que suas atividades estão fundamentadas na Lei Federal nº 12.965/14, o Marco Civil da Internet, enquanto as atividades dos motoristas independentes são reguladas pela Lei Federal nº 12.587/2012, a Lei de Política Nacional de Mobilidade Urbana.
Diante desse contexto, considerando também o modelo de negócio da empresa Uber e das demais plataformas digitais de intermediação de serviços, pode-se concluir que os motoristas parceiros em hipótese alguma prestam serviços às empresas operadoras das plataformas, independentemente da existência de vínculo empregatício ou não. Na realidade, quem utiliza o serviço de transporte são os passageiros, usuários do aplicativo, enquanto a empresa operadora da plataforma atua apenas como intermediária, facilitando a conexão entre essas partes, mediante a cobrança de uma taxa sobre o valor da corrida.
Em razão disso, nos termos do critério material (fato gerador da obrigação tributária) das contribuições sociais à Seguridade Social previsto no artigo 195, I, alínea “a” da CF, entende-se que não é possível a exigência do tributo por parte do Governo Federal. Isso se deve ao fato de que a incidência ocorre sobre a totalidade das remunerações pagas para retribuir os serviços prestados. No entanto, a Uber e as demais plataformas desse segmento não tomam os serviços de transporte dos motoristas, o que implica que não há remuneração paga a esse título. Portanto, não há ocorrência do fato gerador que atrai a obrigação ao recolhimento de contribuições previdenciárias da cota patronal.
Nesse sentido, é importante destacar que, embora seja louvável a preocupação com os direitos da categoria dos motoristas de aplicativo, percebe-se que o Governo Federal está utilizando esse pretexto com a finalidade meramente arrecadatória. Isso porque, a imposição de recolhimento das contribuições sociais sobre a atividade analisada está em desacordo com a Constituição Federal, o que evidencia uma nítida inconstitucionalidade no projeto apresentado pelo Governo.
Em resumo, foi demonstrado neste artigo que independente do fato do motorista de aplicativo ser considerado um prestador de serviço individual ou um trabalhador autônomo, não há autorização constitucional para que o Governo Federal exija o recolhimento obrigatório de 20% a título de contribuição previdenciária por parte das operadoras de aplicativos. Isso se deve ao fato de que essas empresas não remuneram os motoristas como contrapartida pelos serviços prestados, uma vez que não tomam serviços dos motoristas.
A atividade de transporte de passageiros por meio de aplicativos tem se mostrado muito relevante para a economia nacional. De acordo com um levantamento realizado pela Uber em 2021, a plataforma gerou R$ 36 bilhões à economia brasileira, o que representa 0,4% do PIB do país. Esse trabalho propicia que milhões de brasileiros consigam obter renda com a atividade, bem como apresenta um modelo de trabalho mais flexível, no qual o motorista pode decidir em quais horários irá trabalhar e até mesmo conciliar com outras atividades.
Logo, medidas que visam burocratizar a atividade e trazer oneração fiscal representam um retrocesso ao avanço econômico. A taxação implica em aumento do valor do serviço aos usuários, redução do valor líquido recebido pelo motorista e aumento das despesas das empresas de aplicativo. Isso pode tornar a atividade inviável e levar as empresas a encerrarem as operações no Brasil, afastando os investimentos estrangeiros. Essa possibilidade foi inclusive sinalizada pela própria Uber nos autos do Recurso Extraordinário nº 1446336 – Tema nº 1.291.
Como mencionei em artigos anteriores, as medidas adotadas pelo Governo Federal, como forma de ajustes das contas públicas, inevitavelmente geram disputas judiciais entre o Fisco e os contribuintes. Isso ocorre porque, muitas vezes, as imposições fiscais feitas para aumentar a arrecadação não observam os critérios legais mínimos para a cobrança.
O projeto de lei assinado pelo Governo para regulamentação da atividade dos motoristas de aplicativo foi enviado para apreciação do Congresso Nacional e continuaremos acompanhando os próximos passos de sua tramitação no legislativo.
Everson Santana